
Martelo Sorna
Hoje trago-vos a crónica de uma personagem que parece ter saído diretamente de um romance: Martelo Sorna.
Chegou à obra como pintor, mas depressa fez saber que se dedicara toda a vida à arte do estuque no seu país de origem. Com um ar descontraído e, simultaneamente, cansado, contou que vinha de outra obra na Atalaia, onde, durante semanas, teve de corrigir muitos metros quadrados de erros no gesso cartonado causados pelos seus colegas. Isto parece mais uma adaptação do Luís Marinho de “Colocar um guarda-redes na ponta de lança”. Esta foi uma tarefa que o deixou exausto, mas que, para ele, só reforçava a dureza e o valor do seu trabalho. Não tardou a expressar a sua insatisfação salarial, alegando que o trabalho de estucador era muito mais exigente que a pintura e que, portanto, merecia um aumento por parte do Luís Marinho. Estava pronto a procurar novas paragens caso a sua reivindicação não fosse atendida. Até parece que era eu que decidia o seu futuro salarial.
Como diria Sócrates, “uma vida sem exame não merece ser vivida”, e não é de admirar que se questione a justiça das condições laborais.
Para tornar a história ainda mais pitoresca, este personagem decidiu fumar dentro da minha casa, deixando, sem mais nem menos, as pontas de cigarro a espalhar-se pelo chão – sem sequer pedir autorização. Uma atitude que certamente não passou despercebida e que, por si só, levanta a questão: onde fica o respeito pelo espaço alheio? Talvez, num outro tempo, tal comportamento pudesse ser interpretado como um gesto de rebeldia artística.
E não parou por aí. Em várias ocasiões, faltou um dia por outro, justificando a ausência com a dor insuportável no ombro – consequência, dizia ele, de semanas a barrar e lixar paredes, enquanto os colegas que aplicavam o gesso cartonado se limitavam a um trabalho de qualidade duvidosa. Assim, entre desculpas e dores, foi-se tecendo o retrato de um homem que, apesar de tudo, não hesita em defender a sua honra profissional.
O ponto de ruptura ficou mais próximo quando, num certo dia, decidi verificar a qualidade de parte do trabalho que ele afirmava ter terminado. Ao constatar diversos erros, não hesitei em marcar com lápis na parede os defeitos que encontrei. O que parecia ser uma tentativa de exaltação pessoal transformou-se num episódio de afronta e desentendimento.
No último dia desta aventura laboral, depois do almoço, deparei-me com Martelo Sorna numa das divisões da casa – uma sala onde as janelas e portas estavam fechadas, supostamente para não perturbar a claridade. Lá, encontrá-lo a dormir, em plena hora de trabalho, foi a gota que transbordou. Ao ser questionado sobre a sua presença ali, ele mostrou-se irritado por ter sido chamado à atenção. Após este episódio, anunciou que iria ligar ao patrão para informar que se retirava da obra. Eu, por minha vez, deixei claro que seria eu próprio a ligar ao Luís Marinho – oferecendo até mesmo dinheiro para pagar o táxi e pôr fim à situação.
No fundo, a história de Martelo Sorna deixa-nos a refletir: será que o verdadeiro valor de um trabalho se mede apenas em horas e salários? Ou será que o que conta, afinal, é a paixão, a honestidade e o espírito de luta que cada um carrega consigo? Como bem dizia Fernando Pessoa, “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.” E assim, entre tropeços e desafios, a saga deste estucador-pintor torna-se num convite à reflexão sobre os altos e baixos da vida e o eterno equilíbrio entre o esforço e o reconhecimento.
E assim, caros leitores, mais um episódio desta novela inacreditável chega ao fim. Fiquem atentos, porque a saga da remodelação da minha casa, infelizmente, ainda tem mais capítulos para contar.